Me nomearam de Barros. Uma honra! Mas prefiro ser de pó, como todo mundo.

Agora, Sr. Leão, limpe seus óculos do melado poesia.
É preciso ver o povo de Sabiaguaba perdendo a terra com o olho seco.
Todo ano uma beiçada que vai. São vinte e três anos de beiçadas invadidas e vendidas. São vinte e três anos de especulação em terras federais.

Dona Alvina vê homens do INCRA chegar e sair uma vez por ano, mas espera falar com o INCRA em pessoa. Ele vai resolver a situação, afinal a terra é Dele.

É preciso ver o povo de Sabiaguaba perdendo a terra com o olho seco.
Como o chão dos morros esfaqueados de balizas demarcando terra de ninguém. Terra do INCRA e da justiça que nunca vêm. Terra de quem gritar primeiro.

Já juraram matar o pai de Mazinha porque, em nome de Sabiaguaba, ele grita. E porque ele grita, Mazinha grita de medo por dentro e adoece. Eu entendo Mazinha, que mora aqui. Cada um bota o medo onde pode, onde dá. Eu, que sou visita, ponho meu medo em você, Sr. Leão. O que dentro mata, fora fortalece.

É preciso ver o povo de Sabiaguaba perdendo a terra com o olho seco.
Como seco é o grito de Valneide defendendo os agregados. Porque de famílias nascem famílias. Porque a vida não parou. Porque a história do Assentamento não cabe em formulário. A história é no vivendo. Vida tem que ser motivo para as leis acontecerem, e não desculpa para a omissão.

É preciso ver o povo de Sabiaguaba perdendo a terra com o olho seco.
Como a enxada do Valyris, que sabe chegar e sair. Sabe plantar e cortar. Sabe ouvir e se fazer ouvir. E sabe brigar! E sabe brigar!

Valyris e Valneide são irmãos. De sangue e enxada. Lado a lado lideram a revolução que já chegou. A briga começou a vinte e três anos e não vai acabar agora.

Por isso, é preciso ver o povo de Sabiaguaba perdendo a terra com o olho seco.
Para não confundir realidade com literatura.
Para saber que eu avisei.
.........

Agora me assoviou uma curiosidade: Onde você põe seu medo, Sr. Leão?

Xeru,
Borboleta.

Nossa Senhora Desatadora dos Nós. Para resolvermos os atados pessoalmente.

Eu venho pra ti contá
(sereno do mar, sereno do mar)

Conheci o Seu Ratinho
(sereno do mar, sereno do mar)

Um homem desse lugá
(sereno do mar, sereno do mar)

E foi no meio da roda
Q’ele m’ensinou embolá
(sereno do mar, sereno do mar)

Um roda animada
(sereno do mar, sereno do mar)

Do povo do Ceará
(sereno do mar, sereno do mar)

Teve coco, teve samba
(sereno do mar, sereno do mar)

E peixe pra beliscá
(sereno do mar, sereno do mar)

Teve até Mestra Tereza
Mostrando o sapateá
(sereno do mar, sereno do mar)

Foi na Casa das mulheres
(sereno do mar, sereno do mar)

O Mardoni tava lá
(sereno do mar, sereno do mar)

E também Dona Deninha
(sereno do mar, sereno do mar)

Que é rendeira pra daná
(sereno do mar, sereno do mar)

Sua renda é muito fina
Todo mundo quer comprá
(sereno do mar, sereno do mar)

A Valneide foi pra rima
(sereno do mar, sereno do mar)

Chamou Vera pra rimá
(sereno do mar, sereno do mar)

Mas a moça não queria
(sereno do mar, sereno do mar)

Disse que não ia dá
(sereno do mar, sereno do mar)

Que sua religião
Não permitia mais brincar
(sereno do mar, sereno do mar)

Toda a religião
(sereno do mar, sereno do mar)

É pra gente respeitá
(sereno do mar, sereno do mar)

Deus ta aqui e ali
(sereno do mar, sereno do mar)

E também ta acolá
(sereno do mar, sereno do mar)

E numa festa tão bonita
Ele também deve está
(sereno do mar, sereno do mar)

Aprendi foi muita coisa
(sereno do mar, sereno do mar)

Com o povo do Ceará
(sereno do mar, sereno do mar)

Esse povo é de artista
(sereno do mar, sereno do mar)

No caixão e no ganzá
(sereno do mar, sereno do mar)

E quando eu voltar pra casa
Muita história vou levar
(sereno do mar, sereno do mar)

O caixão não é aquilo
(sereno do mar, sereno do mar)

Que bota pra enterrá
(sereno do mar, sereno do mar)

Caixão é um instrumento
(sereno do mar, sereno do mar)

Uma caixa de tocá
(sereno do mar, sereno do mar)

Que o Mestre Chico Quirino
Sabe muito bem levá
(sereno do mar, sereno do mar)

E agora meu querido
(sereno do mar, sereno do mar)

Eu vou aqui encerrá
(sereno do mar, sereno do mar)

Que a noite já chegou
(sereno do mar, sereno do mar)

É hora do meu jantá
(sereno do mar, sereno do mar)

Te deix’um abraço gostoso
E xeru pr’acompanhar
(sereno do mar, sereno do mar)

Conheci Seu Luís.
Conta histórias com o que encontra no chão.

Já lavou muito morto. Gosta de ajudar nessa hora. Gente morta não presta. Fede. Vivo já é podre. Bebeu cachaça na cabeça do morto. Sentiu por mais de mês. Cabeça de homem é toda fechada. Cabeça de mulher tem um lasco no meio, não dá para beber. Mulher vaza. Velório daqui tem cachaça, comida farta e futricagem dos mais novos. É preciso compensar a perda. Risada e choro cuspido quando ninguém espera. Para dar banho bota o morto em pé. Durinho. Banho em mulher desassossega mais. O mar já engoliu um que ninguém mais achou. Foi arraia. Outro ele pescou. Ninguém queria, mas ele trouxe. Inchado de morto. Difícil carregar. Mas trouxe. Na cova antes era só terra, sem casa de morto. Cavava, amarrava uma corda de um lado e de outro depois descia.

Haja mão. Haja chão.

Morto que quase não viveu é anjo que chora de sete em sete. Dias, meses, anos, e lá vão sete. Sempre tem quem escute.
Sinto você morrendo. Amanhã beberei e dançarei de sete em sete. Sempre tem quem escute.

A tristeza me umedece a alma sem ter nem porque. Deve ser o lasco do meio. É-meio difícil ter lasco.

Durma bem,
Borboleta.