A arte necessita dos vazios para se fazer.

Hoje conheci o ponto de cultura “Abrindo Velas Pescando Culturas”. Quatro computadores dos quais apenas dois dão acesso à Internet. Mas que revolução fez essa Internet por aqui. A crianças e os adolescentes, na idade onde a fome de mundo faz o que o mundo vai ser, foram os primeiros a apreender o possível e inventar alguns impossíveis que estivessem mais perto. Valneide lembra dos Piratas Cabrais chamarem desperdício a vinda da Internet para Sabiaguaba.  Tem desperdício que, em vez de gastar, engrandece. Ajuda a desatar-se dos Piratas Cabrais e vê quem é nossa gente.

Conheci Amanda. Veio da cidade faz dois meses. Está na quarta série, mas já sabe ler bem. Fez questão de mostrar. Diz que não gosta da cidade, porque lá tem muito carro e as pessoas vivem se matando. Em Sabiaguaba dá pra brincar na praia e as pessoas se visitam. Ela fala muito. Sabe cantar até música em inglês, conhece a história da areia movediça e quer participar do laboratório. Mesmo sem ter coragem, ela quer. Diz que todo mundo está sabendo da reunião de quarta feira. Porque falaram na igreja.

Hoje começou minha época de sangrar. Nesses dias as marés me transbordam. Sou mulher até a alma.


Mesmo dia, depois do peixe cozido.

Nel me explicou que o mar é redondo. E que todo mundo mora em ilha. O mar de Sabiaguaba fica de frente para o que banha o Chile e, antes de chegar no Rio de Janeiro esse de Sabiaguaba ainda pega na mão de muitos outros mares do nordeste. Meu entendimento de olho foi uma ciranda de mares desenhando a América Latina toda. Nel tem a geografia dele. Uma geografia de olho que o leva pra onde ele quiser ir.

Agora começou a chover. Quando chove fora da casa, pinga pouquinho dentro. Como se a casa fosse o dentro e o fora se combinando. Sandrinha me perguntou quem é você, Sr. Leão. Nesse instante entendi que você é que nem essa casa: O dentro e o fora se combinando.

Demorou, mas ontem a Letícia finalmente brincou comigo. Quando o coco toca, se não acordam a Letícia, ela chora. Zanga pro dia todo. Diz que, quando crescer, vai aprender a dançar o coco. Mas o povo sabe que nem é preciso esperar. Lele entra na roda e já fica grande.

Sandrinha, depois que eu contei da geografia do Nel cirandeando a América Latina, ainda deu um jeito de juntar a América Central, América do Norte, o Mario, o Oswald e o Manifesto de Andrade na mesma dança. Tenho pra mim que Sandrinha está certa. Nossa existência em tempo e espaço, de longe, é um bordado só. De perto é que a gente vê a diferença das miçangas.


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